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Quarta-feira,
6/5/2015
As Duas Amantes
Raul Almeida
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Afinal, temos um destino traçado de forma gentil ou implacável? Suave ou dolorosa? As coisas vão acontecendo ou o livre arbítrio estabelece as derivas da nossa vida? Pensava no assunto quando encontrei um velho conhecido, quase amigo, freqüentador dos mesmos lugares dos tempos em que tinha vasta cabeleira, perfil esguio, sorriso de trinta e seis dentes e a confiança dos últimos anos "inta". Logo após as efusivas saudações de praxe, o forte abraço, a troca das frases e as indagações comuns a estes momentos, comentei ironicamente, a cor dos seus cabelos, recebendo uma resposta inusitada e rápida:
-Não pinto os cabelos não! Imagine! Eles sempre foram desta cor. Você deve lembrar-se. Só diminuíram de volume, mas a cor, sempre foi a mesma. Bem, eu corrijo o tom de três em três semanas. Mas pintar é outra coisa, pintar é trocar de cor. É coisa de boiola ou artista. Eu só faço uma correção periódica.
Fiquei surpreso com o artifício semântico que o eximia da eventual culpa por vaidade excessiva, ou a revelação de alguma tendência a polivalência erótica. A verdade é que o encontro nos agradou reciprocamente e a primeira providência foi esquecer as responsabilidades imediatas, procurando um bar aonde pudéssemos por as conversas em dia. Falamos das alegrias passadas, dos excessos, das farras e bebedeiras, atualizamos o obituário dos amigos, comentamos as mulheres, as amigas e procuramos recontar cada um daqueles momentos que mais marcaram as nossas lembranças.
-Foram dias e noites memoráveis!
Repetíamos ao fim de cada uma das historias relembradas e recontadas com o máximo de nomes e detalhes
Depois ensaiamos alguma seriedade, procurando recompor os registros das nossas próprias vidas. O que é que estávamos fazendo ou o que fizemos de sério até este encontro tão inesperado.
Comentei a minha vida em poucas pinceladas. Seguia firme com o mesmo e indestrutível casamento, agora com os filhos independentes e os netos crescidos. Falei da carreira profissional terminada e sepultada por camadas de outros interesses, pelo meu gosto pela literatura, pelas artes plásticas, pela pintura e pela música. Comentei, igualmente, a minha peregrinação pelas idéias mais complexas, lendo muito sobre filosofia, religião, ocultismo, lógica aristotélica etc.
Ele ficou ouvindo tudo com atenção e vez por outra, alguma surpresa. Não sabia, por exemplo, que eu estudara musica quando jovem e nem imaginava que alguém daquela turma se interessasse por filosofia ou mesmo literatura. Achava que éramos todos mais alegres e menos complicados do que estes assuntos.
Argumentei que não havia nenhuma sisudez ou tristeza no conhecimento. Completei a minha atualização cadastral confidenciando a vontade de escrever um romance. Uma historia que pudesse sensibilizar e transferir as minhas observações e experiência de vida, para um público maior do que a minha própria memória. Ele, sorrindo, apoiou minha pretensão e ainda reforçou com elogios à minha diversidade de interesses, mencionando uma inteligência que não ousei reconhecer.
Depois foi a sua vez. Logo de cara, fez uma confissão que, se não fosse pelo nosso passado de boemia, até poderia surpreender. Tive a impressão que quis impressionar-me, provocar espanto, inveja, admiração. Coisa que rapazes fazem quando contam suas bravatas e aventuras, invariavelmente, aumentadas nos grupos de esquina ou nas rodas de bar.
-Tenho duas amantes! Começou sua fala, pigarreando e pedindo um "café com leite", coisa daqueles tempos. Estávamos no quinto chope e agora era a hora de rebater com a batida de amendoim.
-Pois é, casei e descasei um monte de vezes. Nada oficial, mas acabei arranjando uma filha com uma daquelas namoradas da antiga... As coisas são assim. Depois, morei cinco anos com aquela advogada, lembra? Uma que tinha mania de ir à praia toda maquiada, com um chapelão de palha, fazendo tipo Jane Mansfield.
-Lembro sim. Lembro até quando vocês se atracaram num carnaval lá no baile do Sírio.
-É, é essa mesmo.
Depois me juntei com uma outra que morava em São Bernardo. Era professora de latim, dava aula de religião, tinha mania de freqüentar grupos de oração e não durou muito. Depois que a paixão passou, a vida virou um inferno. A mulher dizia que queria me recuperar, me transformar pela leitura das escrituras, uma coisa maluquíssima. Você pode imaginar. Eu que nunca tive cachorro, horta e naquele tempo nem filho, tendo que aturar uma doida dessas.
Um dia arrumei a mala, sai porta fora. Fiquei dois anos morando em Portugal e depois mais um na Itália. Quando voltei, ela tinha se casado, tinha filho e não queria nem imaginar que eu existi em sua vida. Deu certo. E assim foi.
Tive amigações com umas bem demônias, e com outras menos, aquelas coisas. Ah, falei que tenho uma filha. Pois bem, foi muito complicado, pois eu não acreditei que era minha e aí, já sabe, foi uma batalha. Depois que ficou provado, eu entendi que a menina não tinha culpa da imbecilidade da mãe e do pai.
Tratei de reconhecer e agora somos amigos. Ela está com vinte e um anos, tem uma cabeça ótima, está fazendo faculdade e, bem, menos mal, vai ser uma pessoa feliz. Apesar dos pais.
-Bem, depois desses casos todos você ainda arruma duas ao mesmo tempo? Que coragem. É gostar de confusão mesmo.
-Pois é, e você nem imagina o que eu vou te dizer agora: São irmãs gêmeas!
-O que? Este é o sonho de consumo de qualquer espada. Imagine só, gêmeas gostando do mesmo canalha! Você se superou. Mas é assim mesmo? As duas sabem uma da outra? Como é que é esse papo?
-Sabem, gostam e combinam para me atormentar de vez em quando. É uma relação à la cinema italiano dos anos 50.
-Então é barra pesada mesmo.
-É sim. A gente curte muito. Têm vezes que ficamos dias sem sair de casa, agarrados os três, firmes, num abraço de polvo com tamanduá. Outras vezes eu me mando, saio fora, agradeço aos santos, vou pescar na Bertioga, vou para o Rio andar de barca até Niterói, tomo umas, encontro um pessoal, queimamos as saudades, aquelas coisas.
Passa um tempo e elas chegam de novo. Muitas vezes estou desenhando, e aí não saem do meu lado. Fico dias desenhando e elas ali. Quando o surto é literário, vez por outra aparecem. Ficam rondando, sugerindo assuntos, querendo trocar frases inteiras, declamam, rabiscam papeis. São duas crianças infernais. Duas criaturas estranhas. Adoram estimular minha memória, buscando momentos específicos do meu passado.
Fico atordoado com certas atitudes, coisas que poderiam ser evitadas e não foram. Muitas vezes parecem saber de tudo. Pegam um objeto, uma data, um livro com uma dedicatória, uma foto e eu desabo. Despenco no vazio do inferno. Depois vão embora, sem olhar para trás. Ah, recentemente estiveram em casa. Foi jogo rápido. Agosto é um mês cheio de datas que remetem a muita coisa. Uma delas tem mania de horóscopo, astrologia, signos, e sempre que aparece, diz que é influencia de saturno em quadratura com urano, ou que plutão está retrogrado ou mesmo que marte invadiu a minha casa astral... Vê se pode, em pleno século vinte e um, ainda tem gente com essa conversa.
Fiquei calado, escutando e imaginando como seriam as duas mulheres. Em seguida perguntei:
-Que idade tem? Como é que são? Pelo menos devem ser bem bonitas. Neste quesito você sempre foi muito exigente... Ele sorriu, chamou o garçom, pediu mais dois chopes, um "café com leite" e respondeu:
- O Vinicius de Moraes já falou sobre a necessidade de serem sempre bonitas, com o perdão das feias... Elas são muito firmes, fortes, tem personalidade, tem argumentação e agilidade mental, uma capacidade de persuasão absurda. Não são tão jovens como deveriam, mas tem a carne dura, firme, a musculatura sarada, um olhar fatal, impiedoso, atraente e mórbido. São ao mesmo tempo, estridentes e suaves.
-Como se chamam? Insisti.
-Como se chamam?Ah... Dê e Prê ... São. Demorei a entender. Ficamos um tempo em silêncio e, depois de um sinistro coro de gargalhadas, fomos comentar os resultados do futebol e o valor da mega-sena.
Postado por Raul Almeida
Em
6/5/2015 às 11h30
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